quinta-feira, 29 de maio de 2008

Recomeço

Nada de interessante programado para acontecer. Naquele ano, não havia mais feriados. Ele ainda não tinha completado metade do seu período aquisitivo de férias. Estava com vários projetos atrasados e várias contas vencidas não pagas. Há muito não experimentava um momento de paz. Não se sentia protegido nem ao menos em sua própria casa. Impotente diante das provações que a vida lhe impunha, sua única vontade era dormir. Sono profundo e sonhos de fuga.
Eram seis e meia de uma manhã de quarta-feira. Um dia úmido e de céu encoberto. Podia-se ouvir o barulho das rodas molhadas dos automóveis. Todos tinham pressa e aceleravam os motores.
Tomou um banho mais demorado. Resolveu não fazer a barba. O vapor da água quente embaçou o espelho e apareceu o que havia escrito com o dedo na manhã do dia anterior: “vida de merda!” Pegou a toalha de rosto e apagou veementemente. Há quanto tempo se sentia assim? Pensou. Há quanto tempo tinha desistido de lutar? Por que se tornara tão apagado? Em que momento atrás sucumbira? Pensou. Não localizou o dia em que perdera a esperança em si mesmo. Olhou-se. Um homem fracassado! Sua expressão era desânimo.
Resolveu fazer a barba. Encheu a mão de espuma e espalhou com força e desespero por todo seu rosto. Lavou energicamente a mão e, mesmo tremendo-a, trocou a lâmina de barbear e levou à costeleta. Fazia a barba como se pudesse tirar suas rugas e vincos marcados pelo sofrimento de ser a maior e, talvez, a única vítima de si mesmo. Como que tomado pelo derradeiro esforço, chegou a pronunciar uma interjeição de auto-estímulo. - Vamos lá, falou para o reflexo que o encarava do outro lado. -Eu consigo! –Vamos lá! Acabou por escanhoar-se cuidadosamente. Abriu o armário atrás do espelho, pegou o tubo de gel e passou prodigamente pelo cabelo. Penteou-se com zelo. Fez as unhas e perfumou-se. Vestiu-se elegantemente, encheu o peito e saiu para o ringue da luta cotidiana, dispondo-se a tentar mais uma vez.
Na casa, todos da família continuavam a dormir. Podia-se entender pelo barulho de louças e panelas, que a empregada já tinha começado a preparar o café da manhã. Desde muito não se tomava mais o desjejum em família. Sua decadência se espalhara e, com ela, também se desequilibraram as relações familiares. Cada um vivia em seu inferno. A empregada não estranhava mais se a mesa posta para 5 pessoas não fosse tocada. Assim como arrumava, desarrumava e guardava. Naquele dia, no entanto, tudo seria diferente, pensou. Mesmo diante da própria incerteza com relação a mais essa tentativa, sentou-se à escrivaninha e preparou um bilhete para sua mulher.
Bom dia querida, sei que esses últimos tempos não têm sido fáceis para nós, hoje, no entanto, acordei e percebi o quanto gosto de você e das crianças. Quero muito voltar a ver essa casa feliz. Esta noite, claro, se você não estiver cansada, gostaria de levá-la para jantar fora e depois dançar. Ligue para mim quando estiver disposta... ”
Não, pensou melhor e riscou a última frase e escreveu:
Ligo para você mais tarde”.
E subscreveu-se, como fazia nos tempos em que namoravam:
Eterno Amor”.
Pegou sua maleta do escritório, foi à copa, deixou o bilhete sobre o prato de sua mulher, tomou um cafezinho em pé, deu bom dia à empregada e saiu. Apertou o botão do elevador. Nos poucos minutos de espera, pegou-se assobiando uma bossa-nova. Sim, tudo iria melhorar. No fim tudo acaba bem, pensou. Se tudo não está bem, é porque o fim ainda não chegou, pensou positivamente!
Abriu a porta do elevador e apertou “SS”. O elevador era velho, mas confortável. As paredes de jacarandá, o painel de botões dourado, o piso acarpetado de bordô, corrimões dourados, teto de metal laqueado, um amplo espelho fumê na parede de trás. A reforma tinha sido impecável. O barulho de cabos e o ranger do carro nos trilhos, no entanto, eram os mesmos de antes. Ouviu um estampido forte. Logo o elevador desequilibrou-se para o lado esquerdo. Outro estampido forte e percebeu, numa fração de segundos que descia descontrolado. Do décimo segundo ao segundo subsolo em cinco segundos .

Quando os bombeiros retiraram seu corpo, ainda se sentia a fragrância da loção importada.

segunda-feira, 12 de maio de 2008

Nós e a caveira

Auto Posto

“Pobre só come carne quando morde a língua”. Eu me lembro desse ditado (bem popular, aliás) escrito no encosto do banco de cimento, do posto Barreirense da Rodovia Washington Luis. As crianças achavam engraçado e chamavam a nossa atenção. Tinham vários iguais: “Sogro rico e porco gordo, só dá dinheiro depois de morto”, (ou será que não era: “porco rico e sogro gordo”?) ““ Deus aperta, mas não enforca”, Pisão de galinha choca não mata o pintinho“, nós dávamos risada, lendo em voz alta para elas, imitando o sotaque caipira. Esses bancos ficam espalhados ao longo do terraço comprido que circunda a lanchonete e o restaurante. Existe até um mini mercado, loja de conveniência segundo a concepção local. O posto fica no município de Cordeirópolis, depois de Limeira e antes de Rio Claro. O dono, então, era um português jovem (será que ainda é o mesmo dono?), muito bem apessoado, simpático e que vinha me cumprimentar, toda vez que me via entrar em seu estabelecimento comercial. Admirava sua mulher, também bonita, sempre bem vestida e simpática. Faziam um bolinho de bacalhau que quase babo ao lembrar (será que ainda fazem?). Eu sempre tomava uma água de coco gelada. Mais uma idéia do português, inédita na época. E ele cobrava três reais cada coco. Em qualquer lugar você podia comprar um coco por, no máximo, dois reais. Mas eu pagava contente. Era uma parada relaxante e, depois de uma semana tumultuada e cheia de trabalho, a porta de entrada para o ambiente tranqüilo e aconchegante do interior de São Paulo. O meu descanso começava, propriamente ali. Sentia o clima e o ritmo alucinante da cidade de São Paulo, ficarem para trás.
A partir dali ia mais devagar. Colocava no toca fita uma música regional, um som de viola e relaxava! A segunda parte da viagem era bem diferente da primeira. Todos dormiam e eu dirigia olhando para o céu. Nas noites estreladas de lua nova ou nos luares iluminados que até sombra as árvores faziam. Estrelas cadentes riscando o pára-brisa. O gado branco no contraste do pasto verde escuro. Os infindáveis canaviais que ardiam com labaredas altíssimas que se viam longe...
No interior ajuste o seu ritmo. Os dias demoram mais a passar. O relógio anda mais devagar. O tempo é outro. E com horizonte, ar puro, silêncio, sol forte do meio dia, sentir uma chuva chegando, vento úmido no rosto, rede na varanda, passarinhos cantando, o farfalhar das copas, cheiro de flor e terra.
Sinto saudades do Auto posto Barreirense e dos fins de semana na fazenda.

sábado, 3 de maio de 2008

Melhor ainda

(Estou pensando em escrever sobre evoluções, o primeiro argumento – inevitavelmente- é sempre uma confissão.)
Basta saber um pouco de história, para se perceber a evolução de nossa espécie! Tudo evolui. Pode-se até evoluir para o caos, mas mesmo pela inércia, evolui-se. Existe o neologismo (desses novos) que resume um pouco o interesse objetivo: evolucionar. Alguns mais radicais até podem achar esse conceito como “de direita”. Mas, ao contrário, evolução incorpora o final de revolução (e é perda de tempo discutir por causa de um “r”). Repare a semelhança com solução. Desde os mais antigos pensadores, até o dito popular urbano: sai da frente que atrás vem gente, o seguir a frente, adquirindo experiência, está bem claro para a raça humana.
Evolução pessoal significa evolução de toda a sociedade. Tudo está entrelaçado!
Pode-se chegar inclusive ao acerto da tese escotista: sempre alerta! Ajudemos as velhinhas a atravessar a rua pela faixa.
Mas o mais fácil é começar por si mesmo. Afinal você está ali mesmo e pronto para ouvir. Uma vez alguém me disse que a única maneira de se chegar bem ao fim é tentar fazer melhor a cada dia. Se você sabe que está fazendo mal e joga para o dia seguinte, você, certamente, não vai chegar bem ao fim. Tente trabalhar os seus sentimentos e faça bem. Visualize o que você quer atingir. Trace uma rota e acredite. Toda a sociedade agradece! Fazendo o bem para você, está fazendo bem para toda comunidade.
É verdade. Eu tento dar a minha cota!
Vai você primeiro!

sexta-feira, 2 de maio de 2008

O Missionário

No fundo todos nós queremos difundir nossa concepção particular dos fatos. Essa difusão significa a transmissão, verbal ou não, do nosso ponto de vista, sobre como enfrentar a vida. O resultado de uma espécie de manual prático individual.
Através dos vários relacionamentos que vamos tendo, pinçamos algumas coisas que aprendemos de uns, aproveitamos grandes lições de outros e assim com as experiências adquiridas nos transformamos e, por conseqüência, aos poucos vamos re-escrevendo o nosso manual.
Ao mesmo tempo e de forma idêntica, interferimos nos manuais dos que nos rodeiam. Entender o outro é a maneira menos traumática de conviver em sociedade.
Os missionários, todavia, não se limitam a expor e também não querem a própria tra
nsformação, almejam somente o convencimento e a mudança de seus interlocutores. Para eles só existe a sua verdade (deles). E, por pensarem conhecê-la, por acreditarem deter o privilégio de acesso ao fato absoluto, sentem-se compelidos a revelar essa descoberta, indistintamente. Sem cerimônia!
Com banners que chamam ao supremo. Com slogans que dizem que o que revelam espelha a verdade, aquilo que ao se saber tudo transforma e renova. Intitulando-se a Salvação! Olham com ar de superioridade para os pagãos. Por isso que se acham no direito de agir sem cerimônia.
É comum nos grandes centros vermos missionários em seu estado mais avançado. Desde a praça central, até nos largos dos monumentos, são muitos os que gritam aos quatro ventos. Gritam, com todos seus pulmões, berram o mais alto que podem seus estribilhos fatais e o caminho do céu. Para quem simplesmente passa e presencia, é muito difícil ter empatia.
Neste caso, é arriscado sentir o que o outro sentiria se você estivesse na pele dele!
Da mesma maneira que não dá para ficar com pena de todo mendicante de farol – sem que com isso se concorde com a injustiça social – não dá para ficar ouvindo todo pregador de esquina. Em nome da sanidade, ninguém merece!
Se existe só uma verdade, é a que diz que os seus próprios donos não evoluem.
São esses os pastores! Só assim é compreensível alguém pensar que pode transmitir a verdade única. Acreditam serem seus donos.
Na realidade o que ocorre não é transmissão. Não se transmite nada, espera-se, simplesmente, que o intranqüilo caia na trama. Afinal, a tranqüilidade e a saúde, são passageiras! Sob a capa da compreensão, da aceitação da vida pregressa, do perdão aos crimes, enfia-se goela abaixo um novo manual de comportamento a ser seguido.
O público alvo, portanto, é a humanidade! E o jogo é de poder!
Só peço a Deus um pouco de lucidez para não cair nessa trama! Não aceito a seita imposta. Estou construindo a minha própria. Na verdade só quero o direito de exercitar meu livre arbítrio.
Olho em volta, vejo em família, no meio de amigos, nos ambientes de trabalho, dentre conhecidos e percebo quantos os missionários. São pessoas próximas, catequistas de suas próprias doutrinações.
Durante o auge do século passado surgiu o manifesto que pregava a paz e o amor, que rompeu com o romance da figura do guerreiro e do caçador, a tourada virou uma violência desnecessária, a guerra foi finalmente vista feia e a matança de inocentes considerada injustificável.
Os conceitos de paz e de amor foram simplesmente repetidos mais uma vez. Foram muitos os personagens que, ironicamente, na mesma medida dos pregadores das praças públicas, repetiram essas revelações, com toda força de seus pulmões, difundindo o princípio do deixar viver, do respeito à individualidade alheia, do direito de ser diferente. Enfim, do livre arbítrio!
Alguns definem o livre arbítrio como a experiência da liberdade.
Não há espaço para missionários na liberdade.

quinta-feira, 24 de abril de 2008

Passeio com o Bobby

De noite, toda noite, eu tenho que levar o Bobby para um passeio em volta do quarteirão. Quem é o Bobby? Bom, é difícil responder essa pergunta sem parecer um pouco bobo. Por quê? Porque o Bobby é meu cachorro labrador e, para mim, ele não é só isso. Para mim ele é um anjo que alguém lá de cima, que gosta muito de mim, mandou para me ensinar a amar todos os bichos, para amar a natureza, para ensinar a amar em geral. O Bobby é o amor sobre quatro patas. Bem, eu já fui logo avisando que eu sempre pareço um bobo quando falo do Bobby. Sim, claro, eu o chamo de filho. Não foi nem uma nem duas vezes que brincaram comigo, chamando nós dois juntos de Bobi pai e Bobi filho. Mas, tudo bem, eu queria contar outra coisa: toda noite, então, eu saio na rua com ele. Por força do destino – e, sobretudo, do trabalho de toda vida de meu pai – eu moro num dos lugares de comércio mais finos (e caros) de São Paulo, meu quarteirão é todo de lojas. Às vezes, mesmo sendo um pouco tarde, passo por muitas pessoas. Gente de todo tipo, casais saindo de algum dos tantos restaurantes famosos que ficam pela área, funcionários de lojas, indo apressadamente pegar seus carros (onde será que estacionam? Não se encontra um maldito lugar na rua, toda tomada pelos serviços de valet), seguranças de terno e gravata (tenho uma teoria que, daqui alguns anos só os seguranças e os gerentes de TI andarão de terno e gravata), famílias tomando sorvete e olhando as vitrines e muitos outros na mesmíssima situação: levando seus amigos cachorros para uma voltinha a fim de fazerem suas necessidades biológicas. Antes que alguém pense qualquer coisa eu já advirto que sempre pego o cocô do Bobby ! Não me importo, até já me acostumei. Algumas vezes, no entanto, fiquei bem enojado. Não por causa do cocô do Bobby. Mas, porque sem querer peguei de algum outro que, sem ver, estava ao lado do dele. Cocô dos outros (ergh!) e, pior, já frio! O do Bobby, quente, duro, com nós típicos de cachorro que só come ração premium não sinto nada. Mas, tudo bem, eu estava dizendo outra coisa: eu sei que é feio, que não se deve escutar a conversa dos outros, mas nesses passeios eu ouço coisas bem interessantes. Como a vez em que vi duas moças bem vestidas, mas que pelo jeito não usavam roupas caríssimas de grife, mas bem vestidas, andando em um passo lento, entretidas na análise das tendências da moda para a próxima estação. Ao passar por elas (sendo puxado de um canteiro para outro) pude ouvir:
- “Sabe? Eu gosto de olhar, mas tenho consciência que essa rua não é para o meu bico. Não tenho dinheiro para comprar nesse lugar.”
Ao invés de ter qualquer sentimento de pena pela condição financeira da moça, eu senti admiração por sua lucidez expressa, pelo modo como ela articulou a frase, pela entonação que deu . Mesmo ciente que não podia consumir aquelas roupas bonitas, ela apreciava observar aquelas vitrines luminosas e coloridas, num despojamento invejável. Passou por mim, olhou para o Bobby e sorriu.
Depois que eu tive o Bobby eu percebi como um cachorro pode ser um ser socializador. Antes, eu não conhecia os arredores, não falava nem com meus vizinhos. Hoje eu compro fiado na banca, cumprimento os motoristas de taxi, os manobristas me ajudam a sair de casa e chamo pelo nome vários outros cachorros do bairro. Meu quarteirão ficou mais meu.

quinta-feira, 3 de abril de 2008

Velho?

Existiu um tempo em que as pessoas falavam para a prole:
- Meu filho, eu o invejo, pois ainda não leu Eça de Queiroz. Quisera poder deslumbrar-me, de novo, com todo o seu estilo escorrido, transparente como uma vidraça.
Outro dia eu ouvi um pai falando ao filho:
- Meu, acho uma delicia você estar começando a navegar na rede. Seu primeiro endereço eletrônico! Para você, todos os emails são novidade. Filho, você vai dar muita risada!
Eu não estou velho...mas já tenho história!